quinta-feira, 27 de junho de 2024

O trabalho moldou a humanidade e hoje molda o mundo

Desde os tempos dos nossos ancestrais até hoje, o trabalho sempre foi essencial para a nossa sobrevivência e evolução. Transformando a natureza e criando ferramentas, fomos aumentando nossa capacidade de ação, o que, por sua vez, também nos mudou e mudou o mundo ao nosso redor.
Dos desenhos nas cavernas aos smartphones, das primeiras fazendas no Crescente Fértil à agricultura de precisão, dos primeiros vilarejos às metrópoles gigantes, o trabalho humano construiu nosso mundo. Ele não só criou cidades e campos, mas também moldou nossas sociedades e a forma como vivemos, nos relacionamos e pensamos sobre a vida.

Mas falar de trabalho é muito mais do que isso. O trabalho humano é social e varia conforme a organização econômica e social de cada sociedade. Ele está na nossa luta pela sobrevivência, na nossa interação com a natureza e na criação de técnicas para transformar o ambiente ao nosso redor. Para entender o trabalho, temos que olhar para essa complexidade e as conexões entre natureza, cultura e sociedade.
Refletir sobre o trabalho é observar como a humanidade se desenvolveu, como as relações humanas mudaram e como criamos e usamos técnicas e artefatos. É entender como nos organizamos social e economicamente, como distribuímos riquezas e como as relações de poder e política se manifestam.

Se compararmos nossa sociedade tecnológica e de consumo com o mito de Narciso, que se apaixonou pela própria imagem, não veríamos uma bela figura refletida, mas um grande acúmulo de lixo. Isso é resultado do modelo capitalista, focado na produção e consumo de mercadorias.
O artista Vik Muniz, por exemplo, recriou a famosa pintura de Caravaggio usando lixo, questionando a sociedade atual. O acúmulo de lixo e resíduos é uma marca do nosso tempo, e se não fizermos nada, os danos à saúde humana serão severos, como alerta um relatório da ONU de 2019. Poluentes em nossa água potável podem fazer com que a resistência antimicrobiana se torne a maior causa de mortes até 2050.
A filosofia ocidental começou com o ser humano maravilhado pela natureza. Platão e Aristóteles disseram que o espanto e a vontade de conhecer foram o ponto de partida para os primeiros filósofos. Eles acreditavam que entender a natureza era como entender a si mesmo, já que o homem faz parte dela.

Na natureza, cada ser vivo tem suas próprias maneiras de sobreviver. Pensa no tigre caçando: ele se esconde, se move devagar, observa sua presa e ataca no momento certo. Alguns diriam que isso é uma técnica, mas há uma diferença importante: enquanto os animais agem por instinto, os humanos planejam suas ações, e suas ações estabelecem memórias que são associadas e usadas aprimorando a próxima ação. A técnica humana envolve razão, acúmulo de conhecimento e planejamento, não apenas instinto momentâneo. Assim, a técnica é uma criação nossa, que inclui tanto ferramentas quanto teorias.

Essa técnica, vista como um procedimento racional que garante nossa existência, está ligada ao trabalho. Através do trabalho, transformamos a natureza, criando produtos que nos ajudam a sobreviver. E ao fazer isso, também nos transformamos, superando nossos limites biológicos com instrumentos e teorias que ampliam nossa capacidade de ação.

O trabalho se desenvolve na cooperação entre as pessoas e, através das relações com os produtos do trabalho, cada indivíduo se humaniza. Assim, o homem é um ser cultural e social, não apenas biológico. A técnica sempre esteve presente na nossa história e muda conforme as transformações sociais, econômicas e culturais no avanço histórico cultural de cada povo, em cada ambiente.


Hoje, o uso da técnica, ou tecnologia, nos diferencia de outras épocas. Nossa sociedade está profundamente influenciada pela tecnologia, que mudou nossos modos de existir e se associa estreitamente com a ciência. Enquanto a técnica tradicional se baseava em conhecimentos empíricos e pré-científicos, a tecnologia moderna evoluiu com a ciência desde o século XVII e se consolidou na Revolução Industrial.

A tecnologia tem criado uma cultura própria. Pense em como nos comunicamos hoje com smartphones e redes sociais, comparado a antes. Apesar de ser um intervalo de tempo relativamente curto, nossas formas de vida mudaram drasticamente. É assim que podemos dizer que vivemos numa sociedade tecnológica.

Os avanços que criaram a sociedade tecnológica mudaram a forma como vemos a natureza. No início da ciência moderna, ao contrário dos antigos pensadores naturalistas, os cientistas não buscavam só entender as leis da natureza por curiosidade. Eles queriam descobrir as leis dos fenômenos para usá-las em nosso benefício. Por exemplo, sabemos que a água congela abaixo de 0ºC e que metais se expandem ao serem aquecidos. Compreender essas leis passou a ser uma forma de usá-las para melhorar a vida das pessoas.

O filósofo francês René Descartes (1596-1650) falou muito sobre isso. Ele acreditava que, em vez da filosofia especulativa ensinada nas escolas, deveríamos buscar uma filosofia prática. Conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os corpos ao nosso redor, poderíamos usá-las como os artesãos usam suas ferramentas, tornando-nos "senhores e possuidores da natureza."

“[...] é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida, e que, ao invés dessa filosofia especulativa ensinada nas escolas, pode-se encontrar uma filosofia prática, mediante a qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos ofícios de nossos artesãos, poderíamos empregá-las do mesmo modo em todas os usos a que são adequadas e assim nos tornarmos como que senhores e possessores da natureza.” 

DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 81-82.

A ideia de “posse” é importante no texto de Descartes. Para ele, o ser humano deveria usar o conhecimento científico para dominar e utilizar a natureza conforme seus interesses. O conhecimento científico trouxe poder, fazendo-nos acreditar que podemos subjugar a natureza. 

Com essa mentalidade, usamos o conhecimento científico para aumentar a produtividade da agricultura, investigar as propriedades do ferro e do aço para construir casas, edifícios, carros e ferrovias, explorar o espaço para lançar satélites que melhoram nossa comunicação e testar medicamentos em animais para evitar doenças. A natureza passou a ser vista como um reservatório inesgotável de recursos, sempre disponível para nosso prazer e bem-estar. Então, já parou para pensar como essa visão impactou nossa relação com o mundo natural e moldou a sociedade em que vivemos hoje?

“O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa [...] O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é alienação daquilo sobre o que exercem o poder.” 

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 20-24.

Os filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer falavam sobre a "razão instrumental" para descrever a razão que se desenvolveu com a ciência moderna. Segundo eles, essa razão se afastou de reflexões sobre os grandes objetivos que deveriam guiá-la. Conceitos e valores como humanidade, liberdade, justiça, verdade, igualdade e felicidade, que não podem ser medidos ou classificados, foram excluídos do domínio da razão. Ao se separar desses valores humanistas, a razão se tornou utilitária, focada em calcular probabilidades e coordenar os meios para atingir um objetivo. Com essa razão instrumental, as perguntas que fazemos são: "Que proveito posso tirar da natureza?", "Como posso lucrar com a exploração de petróleo, água, madeira ou metal?" e "Como posso manipular a natureza para ganhar tempo, produtividade e lucro?".

Diante da situação atual, precisamos repensar nossa relação com a natureza. É hora de refletir sobre o que queremos e como pretendemos viver. Para o filósofo e psicanalista francês Félix Guattari (1930-1992), uma mudança profunda na nossa sociedade depende de uma visão e de ações políticas e éticas mais amplas. Guattari acreditava que a ciência e a técnica deveriam ser orientadas para finalidades mais humanas.

“É evidente que uma responsabilidade e uma gestão mais coletiva se impõem para orientar as ciências e as técnicas em direção a finalidades mais humanas. Não podemos nos deixar guiar cegamente pelos tecnocratas dos aparelhos de Estado para controlar as evoluções e conjurar os riscos nesses domínios, regidos no essencial pelos princípios da economia de lucro.” 

GUATTARI, Félix. As três ecologias. 11. ed. Campinas: Papirus, 2001. p. 23-24.

Arne Naess (1912-2009) foi o filósofo que criou o conceito de ecologia profunda. Ele propôs mudanças políticas, sociais e econômicas para promover uma existência harmoniosa entre todos os seres vivos. Aqui estão os principais pontos de suas ideias: (1) Bem-estar da Vida: O bem-estar e o florescimento da vida humana e não humana na Terra são valores em si mesmos, independentes de sua utilidade para os seres humanos. (2) Diversidade e Riqueza: A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para a realização desses valores e, portanto, também são valiosas em si mesmas. (3) Respeito à Natureza: Os humanos não têm o direito de reduzir essa riqueza e diversidade, exceto para satisfazer necessidades vitais. (4) Impacto Humano: O impacto humano na natureza está aumentando rapidamente, e isso precisa ser reduzido. (5) Mudanças nas Políticas: As políticas econômicas, tecnológicas e ideológicas devem ser mudadas para que a vida na Terra possa prosperar. (6) Consciência Ecológica: A mudança ideológica deve valorizar a qualidade de vida, mais do que perseguir incessantemente um nível de vida mais elevado. (7) Diferença entre Crescimento Material e Pessoal: Deve haver uma conscientização profunda sobre a diferença entre crescimento material e crescimento pessoal, independente do acúmulo de bens tangíveis.

Naess defendia que, para alcançar uma existência harmoniosa, é necessária uma mudança ideológica que valorize a qualidade de vida e reconheça a importância intrínseca de todas as formas de vida. Então, já pensou em como adotar essa visão de ecologia profunda pode transformar a forma como vivemos e nos relacionamos com o mundo ao nosso redor?

Texto adaptado/parafraseado de: ROMEIRO, J; APOLINÁRIO, M. R; MELANI, R; JUNQUEIRA, S. M. Diálogo: ciências humanas e sociais aplicads: trabalho, tecnologia e natureza. 

terça-feira, 25 de junho de 2024

O que é socialização e como ela acontece no nosso dia a dia

Em qualquer sociedade, seja ela simples ou complexa, os indivíduos interagem seguindo certas regras e normas, formando assim um grupo. A Sociologia utiliza um conceito fundamental para estudar o processo pelo qual os indivíduos constituem a sociedade e são moldados por ela: o de socialização.

O processo de socialização inicia-se na família, passa pela vizinhança e pela escola, e continua através dos meios de comunicação. Envolve a convivência com os moradores do bairro, os membros de uma religião, o grupo que frequenta o clube ou participa das festas populares, e os habitantes da cidade onde se nasce ou vive. A imagem mais representativa desse processo é a de uma vasta rede formada por relações sociais que se entrelaçam, compondo diversas outras relações até constituírem a sociedade.


Cada indivíduo, ao integrar uma sociedade, insere-se em múltiplos grupos e instituições que se cruzam, como a família, a escola e a igreja. Assim, o fio condutor parece interminável, criando uma complexa rede de relações onde cada pessoa mantém sua individualidade. Dessa forma, cada um vive suas próprias experiências, que podem ser semelhantes ou distintas das experiências de outras pessoas..

Toda sociedade precisa estabelecer ao longo de sua existência certas normas sociais que proporcionam unidade, favorecem a diversidade e dão sentido à vida em grupo. Ao nascer, o indivíduo entra em um mundo já estruturado, com o qual inicialmente se relaciona de maneira estranha. A criança sente frio, calor, conforto, desconforto, sorri e chora, começando assim a interagir e a conviver com o mundo externo. Nos primeiros meses de vida, aprende a conhecer seu próprio corpo, observando e tocando partes dele ou olhando-se no espelho. Nesse estágio, ainda não se reconhece como um indivíduo distinto, pois não domina os códigos sociais; é apenas o “bebê”, uma entidade genérica.

Com o tempo, a criança começa a perceber que existem outros elementos ao seu redor: o berço (se o tiver), o chão (que pode ser de terra batida, cimento, tábuas ou mármore com tapetes) e os objetos que compõem o ambiente em que vive. Nota também a presença de outras pessoas – pai, mãe, irmãos, tios e avós – com as quais precisará interagir. Descobre que há outros indivíduos, com nomes como José, Maurício, Solange e Marina, que são chamados de amigos ou colegas, e começa a diferenciar as pessoas da família das demais. À medida que cresce, descobre que existem ações permitidas e proibidas. Posteriormente, compreenderá que essas permissões e proibições são determinadas pelas normas, valores e costumes do grupo, das classes e da sociedade a que pertence.


No processo de explorar o mundo, a criança percebe que alguns dias são diferentes dos outros. Em certos dias, os pais não saem para trabalhar e passam mais tempo em casa. Nesses momentos, ela assiste mais à televisão, faz passeios em parques ou outros lugares. Em algumas dessas ocasiões, pode também visitar templos ou igrejas. Durante os demais dias da semana, ela vai à escola, onde encontra outras crianças da mesma idade e também outros adultos. A criança começa a compreender que, além da casa e do bairro onde vive, existem outros lugares, alguns semelhantes ao seu ambiente e outros bastante diferentes; alguns próximos e outros distantes; alguns grandes e outros pequenos; alguns luxuosos e outros simples ou até miseráveis.

Ao assistir à televisão, utilizar a internet, ler um livro ou viajar, a criança percebe que existem cidades grandes e pequenas, antigas e modernas, bem como áreas rurais com poucas casas onde são cultivados os alimentos que ela consome. Aos poucos, ela aprende que cidades, zonas rurais, florestas e rios fazem parte do território de um país, que geralmente é dividido em unidades menores (no Brasil, chamadas de estados). Durante essa "jornada" de crescimento, a criança descobrirá que existem continentes, oceanos e mares, e que tudo isso, junto com a atmosfera, forma o planeta Terra, que por sua vez pertence a um sistema maior, o sistema solar, que está integrado em uma galáxia.

Esse processo de convivência com a família e os vizinhos, de frequentar a escola, de ver televisão, de passear e de conhecer novos lugares, coisas e pessoas, compõe um universo multifacetado no qual a criança vai se socializando. Além de aprender sobre coisas e lugares, ela também vai internalizando palavras, significados e ideias, absorvendo, assim, os valores e o modo de vida da sociedade a que pertence.

Compreender a sociedade significa reconhecer as muitas diferenças no cotidiano dos indivíduos e prestar atenção a elas. É muito distinto nascer e viver em uma favela, em um bairro rico, em um condomínio fechado ou em uma área do sertão nordestino sujeita a longos períodos de seca. Essas desigualdades resultam em formas diferentes de socialização.

Ao discutir as diferenças, é fundamental relacioná-las ao contexto histórico. A socialização de hoje é diferente da dos anos 1950. Naquela época, a maioria da população vivia em áreas rurais ou pequenas cidades. As escolas eram pequenas e tinham poucos alunos. A televisão estava começando no Brasil e seus programas eram vistos por poucas pessoas. Não havia internet e a telefonia era precária. Ouvir rádio era a principal forma de obter informações sobre o que acontecia em outras partes do país e do mundo. As pessoas se relacionavam quase exclusivamente com quem vivia próximo e estabeleciam fortes laços de solidariedade. Escrever cartas era muito comum, pois era a maneira mais prática de se comunicar à distância.
Ao longo da segunda metade do século XX, os avanços tecnológicos nos setores de comunicação e informação, o aumento da produção industrial e do consumo e o crescimento da população urbana provocaram grandes transformações em todo o mundo.

Em certos casos, mudanças econômicas e políticas resultaram na deterioração das condições de vida e na desorganização social, levando a situações desastrosas. Em vários países do continente africano, milhares de pessoas morreram de fome ou em guerras internas, algo que ainda ocorre. Na antiga Iugoslávia, na Europa, grupos étnicos se envolveram em conflitos que misturavam questões políticas, econômicas e culturais. Esses grupos, com ou sem o apoio de outros países, enfrentaram-se durante muitos anos em uma sangrenta guerra civil. Nascer e viver nessas condições é completamente diferente de viver no mesmo local em paz e tranquilidade. A socialização das crianças que crescem em uma situação de "guerra permanente" (quando conseguem sobreviver) é profundamente impactada.

Mesmo considerando essas e outras inúmeras diferenças, geralmente há um processo de socialização formal, conduzido por instituições como a escola, a Igreja e o Estado, e um processo mais informal e abrangente, que ocorre inicialmente na família, na vizinhança, nos grupos de amigos e através dos meios de comunicação.

O ponto de partida é a família, o espaço privado das relações de intimidade e afeto, onde geralmente se encontram compreensão e refúgio, apesar dos conflitos. É nesse ambiente que se aprendem as normas e regras de convivência e a lidar com a diferença e a diversidade. Como muitos dizem, é o lugar onde as pessoas são educadas.

Os espaços públicos de socialização incluem todos os outros lugares frequentados pelos indivíduos e seus grupos. As relações nesses espaços são diferentes, pois envolvem a convivência com pessoas muitas vezes desconhecidas. Nos espaços públicos, não é possível fazer muitas das coisas permitidas em casa, sendo necessário observar as normas e regras específicas de cada situação. Nos locais de estudo e atividades religiosas, por exemplo, o silêncio é essencial; na escola, onde ocorre a chamada educação formal, exige-se pontualidade nos horários de entrada e saída, entre outras regras.

Além disso, existem agentes de socialização presentes tanto nos espaços privados quanto nos públicos: os meios de comunicação, como o cinema, a televisão, o rádio, os jornais, as revistas e os aparelhos eletrônicos (conectados à internet ou não), esses talvez sejam os meios de socialização mais eficazes e persuasivos.

Parafraseado de:
Tomazi, N. D., & Rossi, M. A. (2016). Sociologia para o ensino médio: Volume único (5ª ed.). São Paulo: Saraiva.

O que rola na produção do conhecimento e no ensino de Sociologia?

E aí, beleza? Bora trocar uma ideia sobre a Sociologia, essa disciplina massa que não só faz a gente enxergar o mundo com outros olhos, mas ...