Desde os tempos dos nossos ancestrais até hoje, o trabalho sempre foi essencial para a nossa sobrevivência e evolução. Transformando a natureza e criando ferramentas, fomos aumentando nossa capacidade de ação, o que, por sua vez, também nos mudou e mudou o mundo ao nosso redor.
Dos desenhos nas cavernas aos smartphones, das primeiras fazendas no Crescente Fértil à agricultura de precisão, dos primeiros vilarejos às metrópoles gigantes, o trabalho humano construiu nosso mundo. Ele não só criou cidades e campos, mas também moldou nossas sociedades e a forma como vivemos, nos relacionamos e pensamos sobre a vida.
Mas falar de trabalho é muito mais do que isso. O trabalho humano é social e varia conforme a organização econômica e social de cada sociedade. Ele está na nossa luta pela sobrevivência, na nossa interação com a natureza e na criação de técnicas para transformar o ambiente ao nosso redor. Para entender o trabalho, temos que olhar para essa complexidade e as conexões entre natureza, cultura e sociedade.
Refletir sobre o trabalho é observar como a humanidade se desenvolveu, como as relações humanas mudaram e como criamos e usamos técnicas e artefatos. É entender como nos organizamos social e economicamente, como distribuímos riquezas e como as relações de poder e política se manifestam.
Se compararmos nossa sociedade tecnológica e de consumo com o mito de Narciso, que se apaixonou pela própria imagem, não veríamos uma bela figura refletida, mas um grande acúmulo de lixo. Isso é resultado do modelo capitalista, focado na produção e consumo de mercadorias.
O artista Vik Muniz, por exemplo, recriou a famosa pintura de Caravaggio usando lixo, questionando a sociedade atual. O acúmulo de lixo e resíduos é uma marca do nosso tempo, e se não fizermos nada, os danos à saúde humana serão severos, como alerta um relatório da ONU de 2019. Poluentes em nossa água potável podem fazer com que a resistência antimicrobiana se torne a maior causa de mortes até 2050.
A filosofia ocidental começou com o ser humano maravilhado pela natureza. Platão e Aristóteles disseram que o espanto e a vontade de conhecer foram o ponto de partida para os primeiros filósofos. Eles acreditavam que entender a natureza era como entender a si mesmo, já que o homem faz parte dela.
Na natureza, cada ser vivo tem suas próprias maneiras de sobreviver. Pensa no tigre caçando: ele se esconde, se move devagar, observa sua presa e ataca no momento certo. Alguns diriam que isso é uma técnica, mas há uma diferença importante: enquanto os animais agem por instinto, os humanos planejam suas ações, e suas ações estabelecem memórias que são associadas e usadas aprimorando a próxima ação. A técnica humana envolve razão, acúmulo de conhecimento e planejamento, não apenas instinto momentâneo. Assim, a técnica é uma criação nossa, que inclui tanto ferramentas quanto teorias.
Essa técnica, vista como um procedimento racional que garante nossa existência, está ligada ao trabalho. Através do trabalho, transformamos a natureza, criando produtos que nos ajudam a sobreviver. E ao fazer isso, também nos transformamos, superando nossos limites biológicos com instrumentos e teorias que ampliam nossa capacidade de ação.
O trabalho se desenvolve na cooperação entre as pessoas e, através das relações com os produtos do trabalho, cada indivíduo se humaniza. Assim, o homem é um ser cultural e social, não apenas biológico. A técnica sempre esteve presente na nossa história e muda conforme as transformações sociais, econômicas e culturais no avanço histórico cultural de cada povo, em cada ambiente.
Hoje, o uso da técnica, ou tecnologia, nos diferencia de outras épocas. Nossa sociedade está profundamente influenciada pela tecnologia, que mudou nossos modos de existir e se associa estreitamente com a ciência. Enquanto a técnica tradicional se baseava em conhecimentos empíricos e pré-científicos, a tecnologia moderna evoluiu com a ciência desde o século XVII e se consolidou na Revolução Industrial.
A tecnologia tem criado uma cultura própria. Pense em como nos comunicamos hoje com smartphones e redes sociais, comparado a antes. Apesar de ser um intervalo de tempo relativamente curto, nossas formas de vida mudaram drasticamente. É assim que podemos dizer que vivemos numa sociedade tecnológica.
Os avanços que criaram a sociedade tecnológica mudaram a forma como vemos a natureza. No início da ciência moderna, ao contrário dos antigos pensadores naturalistas, os cientistas não buscavam só entender as leis da natureza por curiosidade. Eles queriam descobrir as leis dos fenômenos para usá-las em nosso benefício. Por exemplo, sabemos que a água congela abaixo de 0ºC e que metais se expandem ao serem aquecidos. Compreender essas leis passou a ser uma forma de usá-las para melhorar a vida das pessoas.
O filósofo francês René Descartes (1596-1650) falou muito sobre isso. Ele acreditava que, em vez da filosofia especulativa ensinada nas escolas, deveríamos buscar uma filosofia prática. Conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os corpos ao nosso redor, poderíamos usá-las como os artesãos usam suas ferramentas, tornando-nos "senhores e possuidores da natureza."
“[...] é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida, e que, ao invés dessa filosofia
especulativa ensinada nas escolas, pode-se encontrar uma filosofia prática, mediante a qual,
conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os
outros corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos ofícios de
nossos artesãos, poderíamos empregá-las do mesmo modo em todas os usos a que são adequadas e assim nos tornarmos como que senhores e possessores da natureza.”
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 81-82.
A ideia de “posse” é importante no texto de Descartes. Para ele, o ser humano deveria usar o conhecimento científico para dominar e utilizar a natureza conforme seus interesses. O conhecimento científico trouxe poder, fazendo-nos acreditar que podemos subjugar a natureza.
Com essa mentalidade, usamos o conhecimento científico para aumentar a produtividade da agricultura, investigar as propriedades do ferro e do aço para construir casas, edifícios, carros e ferrovias, explorar o espaço para lançar satélites que melhoram nossa comunicação e testar medicamentos em animais para evitar doenças. A natureza passou a ser vista como um reservatório inesgotável de recursos, sempre disponível para nosso prazer e bem-estar. Então, já parou para pensar como essa visão impactou nossa relação com o mundo natural e moldou a sociedade em que vivemos hoje?
“O que os homens querem aprender da natureza é
como empregá-la para dominar completamente a ela
e aos homens. Nada mais importa [...] O preço que os
homens pagam pelo aumento de seu poder é alienação
daquilo sobre o que exercem o poder.”
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max.
Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:
Zahar, 1985. p. 20-24.
Os filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer falavam sobre a "razão instrumental" para descrever a razão que se desenvolveu com a ciência moderna. Segundo eles, essa razão se afastou de reflexões sobre os grandes objetivos que deveriam guiá-la. Conceitos e valores como humanidade, liberdade, justiça, verdade, igualdade e felicidade, que não podem ser medidos ou classificados, foram excluídos do domínio da razão. Ao se separar desses valores humanistas, a razão se tornou utilitária, focada em calcular probabilidades e coordenar os meios para atingir um objetivo. Com essa razão instrumental, as perguntas que fazemos são: "Que proveito posso tirar da natureza?", "Como posso lucrar com a exploração de petróleo, água, madeira ou metal?" e "Como posso manipular a natureza para ganhar tempo, produtividade e lucro?".
Diante da situação atual, precisamos repensar nossa relação com a natureza. É hora de refletir sobre o que queremos e como pretendemos viver. Para o filósofo e psicanalista francês Félix Guattari (1930-1992), uma mudança profunda na nossa sociedade depende de uma visão e de ações políticas e éticas mais amplas. Guattari acreditava que a ciência e a técnica deveriam ser orientadas para finalidades mais humanas.
“É evidente que uma responsabilidade e uma gestão
mais coletiva se impõem para orientar as ciências e as
técnicas em direção a finalidades mais humanas. Não
podemos nos deixar guiar cegamente pelos tecnocratas
dos aparelhos de Estado para controlar as evoluções e
conjurar os riscos nesses domínios, regidos no essencial
pelos princípios da economia de lucro.”
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 11. ed. Campinas:
Papirus, 2001. p. 23-24.
Arne Naess (1912-2009) foi o filósofo que criou o conceito de ecologia profunda. Ele propôs mudanças políticas, sociais e econômicas para promover uma existência harmoniosa entre todos os seres vivos. Aqui estão os principais pontos de suas ideias: (1) Bem-estar da Vida: O bem-estar e o florescimento da vida humana e não humana na Terra são valores em si mesmos, independentes de sua utilidade para os seres humanos. (2) Diversidade e Riqueza: A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para a realização desses valores e, portanto, também são valiosas em si mesmas. (3) Respeito à Natureza: Os humanos não têm o direito de reduzir essa riqueza e diversidade, exceto para satisfazer necessidades vitais. (4) Impacto Humano: O impacto humano na natureza está aumentando rapidamente, e isso precisa ser reduzido. (5) Mudanças nas Políticas: As políticas econômicas, tecnológicas e ideológicas devem ser mudadas para que a vida na Terra possa prosperar. (6) Consciência Ecológica: A mudança ideológica deve valorizar a qualidade de vida, mais do que perseguir incessantemente um nível de vida mais elevado. (7) Diferença entre Crescimento Material e Pessoal: Deve haver uma conscientização profunda sobre a diferença entre crescimento material e crescimento pessoal, independente do acúmulo de bens tangíveis.
Naess defendia que, para alcançar uma existência harmoniosa, é necessária uma mudança ideológica que valorize a qualidade de vida e reconheça a importância intrínseca de todas as formas de vida. Então, já pensou em como adotar essa visão de ecologia profunda pode transformar a forma como vivemos e nos relacionamos com o mundo ao nosso redor?
Texto adaptado/parafraseado de: ROMEIRO, J; APOLINÁRIO, M. R; MELANI, R; JUNQUEIRA, S. M. Diálogo: ciências humanas e sociais aplicads: trabalho, tecnologia e natureza.
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