sábado, 12 de julho de 2025

Um canto para a revolução

O processo de independência na América Latina não foi um evento singular, mas um complexo mosaico de lutas, ideais e figuras que moldaram o continente. No cerne desse período fervoroso, destaca-se a figura de Simón Bolívar, o "Libertador", cuja visão de uma América unida e soberana ecoa até hoje. Bolívar, com sua campanha militar e ideais republicanos, não apenas libertou vastos territórios do domínio colonial espanhol, mas também plantou as sementes de uma identidade latino-americana forjada na resistência e na busca por autonomia. No entanto, o sonho bolivariano de uma Grande Pátria enfrentou inúmeros desafios, e o século XIX e posteriores viram a fragmentação e a persistência de novas formas de dominação, muitas vezes econômicas e políticas.

É nesse contexto histórico e ideológico que a voz de Alí Primera, o "Cantor do Povo", ressoa com particular força.

Batizado como Rafael Sebastián Primera Rosell, Alí recebeu o nome "Alí" por seus avós árabes e "Primera Rosell" de seus pais. Sua infância foi marcada pela pobreza extrema. Órfão de pai aos três anos – seu pai, funcionário em Coro, faleceu acidentalmente em um tiroteio na prisão em 1945 – Alí, sua mãe e seus dois irmãos iniciaram um doloroso peregrinar por diversos vilarejos da península de Paraguaná, incluindo San José, Caja de Agua e, finalmente, o bairro La Vela, hoje conhecido como Setor Alí Primera.

Desde cedo, Alí assumiu múltiplos ofícios para ajudar a família na miséria: de limpador de sapatos aos seis anos a boxeador. Contudo, essas dificuldades não o impediram de buscar seus estudos. Em 1960, em busca de uma vida melhor, a família mudou-se para Caracas, onde Alí ingressou no Liceo Caracas para completar sua educação secundária.

Em 1964, após o bacharelado, Alí ingressou na Universidade Central de Venezuela para estudar Química. Foi nos corredores e pátios dessa universidade que sua vocação como cantor e compositor floresceu. O que começou como um passatempo tornou-se gradualmente uma atividade em tempo integral. Suas primeiras canções, "Humanidad" e "No basta rezar" – esta última apresentada no Festival da Canção de Protesto da Universidade de Los Andes em 1967 – impulsionaram-no à fama inicial.

Entre 1969 e 1973, Alí Primera permaneceu na Europa, graças a uma bolsa do Partido Comunista da Venezuela (PCV) para continuar seus estudos na Romênia. Lá, para se sustentar, trabalhou lavando pratos e ocasionalmente se apresentava em locais que valorizavam seu trabalho. Em um estúdio na Alemanha, gravou seu primeiro disco, "Gente de mi tierra". As composições de Alí, que retratavam o sofrimento do povo oprimido pela pobreza e desigualdade social, rapidamente tocaram o coração das pessoas, consagrando-o como o "Cantor do Povo".

Apesar de sua popularidade crescente entre os setores mais necessitados, Alí enfrentou um veto dos grandes meios de comunicação e do governo venezuelano devido ao radicalismo de suas letras. Essa censura o levou a fundar seu próprio selo, Cigarrón, para conseguir difundir suas composições, apoiando-se na Promus para a distribuição comercial. "Em Europa o mundo se me fazia chiquito ainda com os latino-americanos. Eu lavava pratos por não vender meu canto e às vezes conseguia cantar em lugares onde realmente se respeitava minha canção...", ele diria anos depois, já reconhecido.

Após militar na Juventude Comunista e no PCV, Alí colaborou nos primórdios do Movimento ao Socialismo (MAS), atuando na primeira campanha eleitoral de José Vicente Rangel em 1973, sem nunca deixar de ser militante do PCV. A partir de 1973 até sua morte, gravou 13 álbuns e participou de inúmeros festivais por toda a América Latina. Entre suas canções mais conhecidas estão "Paraguaná, Paraguanera", "José Leonardo", "Techos de cartón" (regravada por diversos artistas latino-americanos), "Cruz Salmerón Acosta", "Reverón", "Flora y Ceferino", "Canción mansa para un pueblo bravo" e "Sombrero azul".

Alí Primera levava sua arte diretamente ao povo, apresentando-se em fábricas, liceus, sindicatos e na Aula Magna da Universidade Central de Venezuela. Ele possuía uma intuição notável e audácia para compor melodias que eram um verdadeiro "chamado ao combate", multiplicando seu canto em defesa da humanidade.

Para estudiosos como Jesús Franquis e Andrés Castillo, embora sua obra fosse muitas vezes classificada como "canção de protesto", Alí insistia em chamá-la de "Canção Necessária". Em suas próprias palavras: "Nosso canto não é de protesto, porque não fazemos uma canção por malcriação, não a tomamos para nos encumbrar nem nos fazer milionários, é uma canção necessária." E acrescentou: "Cada dia nos motiva a fazê-la mais profunda, pois um homem armado de uma canção e uma poesia humana, é um homem desarmado para a inveja e para ser um homem mau." Ele via seu canto não como uma lamentação da miséria, mas como a celebração da "possibilidade de borrá-la, de erradicá-la da face da terra".

Na vida pessoal, Alí conheceu sua futura esposa, Sol Musset, em Barquisimeto em 1977. Com ela teve quatro filhos: Sandino, Servando, Florentino e Juan Simón. Ele também foi pai de María Fernanda "Shimpi" e María Ángela "Marimba", de um relacionamento na Suécia, e de Jorge Primera Pérez, com Noelia Pérez.

Sua biografia, marcada pela pobreza e pela consciência social desde cedo, moldou profundamente sua obra. Conforme aponta o blog Andragogia, ele "viveu as agruras da pobreza desde cedo, o que o levou a desenvolver uma aguda consciência social" (Andragogia, 2009). Essa vivência e sua formação acadêmica em química, aliadas a um profundo compromisso político, o transformaram em uma das figuras mais emblemáticas da Nova Canção Latino-Americana, utilizando a música como uma poderosa ferramenta de denúncia e conscientização.

Vamos mergulhar sociologicamente na coletânea "Un Canto a la Revolución" de Alí Primera. Esse som, que está no youtube, é mais do que um álbum de estúdio oficial, este título representa uma compilação essencial de canções que encapsulam o espírito revolucionário e o profundo engajamento social do "Cantor do Povo" venezuelano. Embora Alí tenha lançado álbuns icônicos como "Gente de mi tierra" ou "Techos de cartón" (que, inclusive, contém a famosa música de mesmo nome), "Un Canto a la Revolución" nos oferece uma seleção de suas obras mais politicamente engajadas, refletindo as temáticas centrais dos movimentos sociais na América Latina.

As canções que compõem essa coletânea são a própria essência da "Canção Necessária" de Alí Primera. Elas são um espelho do seu compromisso inabalável com as lutas populares e sua crítica contundente às injustiças sociais e ao imperialismo.


A Coletânea "Un Canto a la Revolución" Inclui Canções Como:

01 - Sangeo Para El Regreso
02 - Canción Bolivariana
03 - La Patria Buena
04 - Los Que Mueren Por La Vida
05 - Abre Brecha
06 - Caña Clara Y Tamblor
07 - Cunabiche Adentro
08 - La Patria Es El Hombre
09 - Perdone Tio Juan
10 - Madre Dejame Luchar
11 - Tin Marin
12 - Canción Mansa Para Un Pueblo Bravo
13 - Mama Pancha
14 - La Canción De Luis Mariano
15 - No Basta Rezar
16 - Techos De Carton
17 - Coquibacoa
18 - El Gallo Pinto

Alí Primera invoca a figura de Simón Bolívar não como um ícone estático do passado, mas como um retorno messiânico, uma força viva para a libertação do povo. Para o cantor, Bolívar "trae Furia y coraje por dentro al ver que nos han quitado lo que él dejó siendo nuestro", traçando um paralelo bíblico ao compará-lo a Jesus Cristo expulsando os mercadores do templo: "si Jesucristo sacó los mercaderes del templo Bolívar también volvió a liberar su pueblo".

O artista critica veementemente a deturpação do legado bolivariano, lamentando que "no es verdad Simón Bolívar que al hacer tu juramento histórico en Monte sacro no pensaste que tu brazo hoy se sintiera cansado de tantos que se han colgado para acudarse en tu nombre". Ele o apresenta como um "Bolívar bolivariano", um amigo e libertador, em contraste com a imagem de um santo ou uma figura morta a quem se acende uma vela. Há um lamento profundo pela situação da pátria, onde o povo, que Bolívar libertou, agora experimenta a "libertad de morirse de hambre pisoteados por la bota norteña", uma clara referência à influência imperialista.

Denúncia da Exploração e Injustiça Social

A obra de Alí Primera é um grito contra a opressão e a miséria. As letras expõem a exploração sofrida pelos mais humildes, identificando a burguesia como herdeira e perpetuadora da dominação colonial: "La burguesía es hija de la colonia y viceversa la opresión está reunida en masa bajo un solo estandarte". A crítica se estende ao imperialismo ianque, acusado de saquear as riquezas naturais do país: "el imperialismo yanqui que hace lo que le da la gana... se lleva lo que es nuestra tierra y solo nos van dejando miseria y sudor y obrero". A ironia amarga de "Nos pagan la tonelada por menos de tres centavos" ilustra a exploração dos recursos.

O contraste entre a riqueza e a pobreza é gritante: "Qué triste vive mi gente en las casas de cartón" versus "que alegres viven los perros casa del explotador". Alí Primera inverte a lógica da dominação ao observar que "el patrón hace años muchos años que está mordiendo el obrero", enquanto os cães são educados "para que no muerdan los diarios".

Chamado à Unidade, Conscientização e Luta

A mensagem de Alí Primera é um apelo fervoroso à unidade popular como a única via para a vitória. A canção reitera o mantra "lucha por la unidad", alertando que "si la lucha por la libertad se dispersa no habrá Victoria en el combate". Ele denuncia a apatia e o conformismo como inimigos internos: "la tristeza de mi pueblo será convertido en fuerzas para que ya no siga enfermo de conformismo en el alma".

A paz, segundo o cantor, não virá sem revolução: "no no no basta rezar hacen falta muchas cosas para conseguir la paz" e "nada se puede lograr si no hay Revolución". Há uma urgência em "despertar a la gente que alcen más y más la frente para merecer la gloria y hacer de nuevo la historia liberando al oprimido si el pueblo está dormido nunca ganará la gloria".

Valorização da Pátria e da Identidade Nacional

A pátria é personificada em suas canções como uma mulher a ser amada e defendida dos que a "manosean" ou a utilizam para seus próprios prazeres, em vez de cuidá-la. Para Alí Primera, a essência da pátria reside em seu povo: "la patria es el hombre muchacho, la patria es el hombre que no pisen". Há um reconhecimento profundo da beleza e da diversidade cultural venezuelana – suas paisagens, ritmos e figuras típicas – que, apesar da tristeza da realidade social, são fontes de identidade e resistência.

A Poesia como Ferramenta de Conscientização e Luta

Por fim, Alí Primera eleva a música e a poesia a um patamar de armas na luta pela dignidade. "Canta canta compañero que tu voz sea disparo que con las manos del pueblo no habrá canto desarmado", ele afirma. O poeta e o cantor têm o papel vital de encurtar o caminho da luta, inspirando a esperança e a união: "el camino es largo pero lo acorta el poeta cuando se acerca al abiego Y surcan juntos la tierra". A música, para ele, é o veículo que transporta a "esperanza en la mano buscando darle a la patria caminos de dignidad".

Alí Primera, através de sua "Un Canto a la Revolución", não só homenageia o legado de Bolívar mas também o ressignifica, transformando-o em um símbolo de resistência contínua contra as novas formas de opressão, e reafirmando a música como um poderoso instrumento de consciência e transformação social na América Latina.

O Legado e a Morte Prematura

Com o passar dos anos, as perseguições e atentados contra Alí se intensificaram. Sua morte ocorreu tragicamente em 16 de fevereiro de 1985, em um acidente automobilístico na Autopista Valle-Coche, em Caracas, que mergulhou a Venezuela em luto. Embora circulem rumores de que o acidente foi resultado de um atentado político, cortando os freios de seu veículo, não há confirmação oficial.

Pouco antes de falecer, Alí havia iniciado um novo projeto discográfico em 1984, buscando combinar seus temas habituais com ritmos inéditos, como a gaita zuliana. Ele havia gravado a voz para apenas quatro faixas. Após sua morte, seu irmão, José Primera (conhecido como José Montecano), e seus sobrinhos, completaram o álbum. "Por Si No Lo Sabía" foi o primeiro e único álbum de Alí a ser promovido na televisão, um meio do qual ele sempre fora censurado. No ano seguinte, a disquera Cigarrón lançou "Alí ¡En Vivo!", gravado anos antes no Auditório Magdalena Seijas em Barquisimeto, uma apresentação que incluiu o Hino Nacional da Venezuela e celebrou um programa radial de música de protesto latino-americana.

Em 2005, o governo venezuelano declarou sua música como Patrimônio Nacional. No entanto, os direitos de seus discos foram cedidos à extinta Top Hits e, posteriormente, adquiridos pela mexicana Balboa Records. O legado de Alí Primera, "o Cantor do Povo", continua vivo nos corações da Venezuela e da América Latina, perpetuando sua "Canção Necessária" como um hino de esperança e luta por dignidade.

Referências:

Andragogia. (2009, 17 de janeiro). Alí Primera: Cantor do Povo. Disponível em: https://andragogia.wordpress.com/2009/01/17/ali-primera/

Primera, Alí. Un Canto a la Revolución. [https://www.youtube.com/watch?v=9BYiWLM0Bww ].





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